Brizola, um líder adiante de seu tempo
Introdução
Este depoimento sobre Brizola não pretende nem poderia ser imparcial. Escrevo não como acadêmica, nem como jornalista, profissão que exerci durante algumas décadas, mas como sincera admiradora dessa figura humana ímpar e desse Estadista com “E” maiúscula. Considero que o fato de ter conhecido Leonel Brizola e Dona Neusa no exílio do Uruguai, acompanhado seus passos em outros exílios – México, Portugal – e depois ter participado da sua caminhada no Brasil é um dos privilégios que a vida me brindou. Deixo aqui, para quem se interessar, algumas singelas lembranças e reflexões sobre um dos maiores brasileiros do século XX.
Do rito da Internacional Socialista para os bancos de madeira...
- Tenho uma surpresa para vocês! Um programa para hoje à noite! Não assumam nenhum outro compromisso, porque não vão acreditar a sorte que tivemos!
A informação chegava num bilhetinho, acompanhado de um olhar e uma expressão de alegria quase infantil...
Era Brizola, que através de várias pessoas que nos separavam do lugar que ele ocupava, nos fazia chegar, ao Neiva e a mim, um pequeno pedaço de papel, bem dobradinho, durante uma das sessões do Congresso da Internacional Socialista (IS), que estava acontecendo em Berlim. Era setembro de 1992. Brizola, no seu segundo mandato como governador do Rio de Janeiro, tinha sido eleito, junto com outras lideranças de vários continentes, vice-presidente da IS numa reunião em Estocolmo, dois anos antes, e ocupava um lugar de honra na primeira fileira. A sua expulsão do Uruguai, em 1977, depois de anos de prisão domiciliar em Atlântida, a 40 quilômetros de Montevidéu, tinha aberto para ele o mundo e a essa altura já era uma liderança de expressão internacional.
Brizola tinha viajado para Alemanha encabeçando uma delegação do Partido Democrático Trabalhista (PDT), que tinha sido aceito como membro pleno da IS, depois de ter participado como convidado no Congresso realizado em Estocolmo em 1989. Faziam parte da comitiva Neiva Moreira, vice-presidente do partido, Dona Neusa, Lígia Doutel de Andrade e Bocayúva Cunha, além de algum outro dirigente que neste momento escapa-me à memória. Eu tinha me registrado como jornalista para ter acesso às conferências de prensa dos líderes mundiais ali presentes. Na verdade, já fazia parte da Comissão do PDT encarregada das Relações Exteriores e já tinha participado, em delegações do partido, em várias conferências internacionais, inclusive da própria Internacional Socialista, em particular acompanhando a Lígia Doutel nas reuniões da Internacional Socialista de Mulheres, da qual Lígia era uma das vice-presidentes. Mas os jornalistas têm alguns privilégios no acesso aos participantes que nem sempre têm os próprios delegados.
Esse Congresso era um evento revestido de uma importância maior do que qualquer outra reunião que eu tivesse acompanhado da IS. Havia vários motivos para isso. A cidade que iria sediar o evento, Berlim, ainda não tivera tempo para se refizer do impacto da derrubada do muro que a dividira durante a Guerra Fria. O local do evento era o impressionante prédio do Reichstag, o Parlamento alemão, palco de importantes momentos da história desse país. (Quem não viu a famosa foto da bandeira soviética no Reichstag em 2 de maio de 1945, o dia em que o Exército Vermelho tomou Berlim, no meio da sangrenta batalha final contra o Terceiro Reich?) E o delicado momento político internacional fazia com que a imprensa especulasse sobre os rumos futuros da socialdemocracia, cujas principais lideranças estavam previstas para fazer uso da palavra durante o Congresso.
A própria chegada à cidade já provocava uma profunda emoção: o processo da reunificação da Alemanha tinha ocorrido só dois anos antes, em 3 de outubro de 1990, voltando Berlim a ser a capital. E naquele setembro de 1992, a cidade ainda mostrava a geografia da divisão, pois a austera arquitetura e a calma do antigo setor Oriental, onde nós estávamos hospedados, num hotel situado perto do Portão de Brandemburgo, contrastava com os prédios bem mais modernos e os hábitos barulhentos do que fora o setor Ocidental.
Na reunião foi sentida com pesar a ausência do presidente da IS, Willy Brandt, já muito doente – cuja mensagem foi lida pelo Vice-presidente, Hans-Jochen Vogel. Lamentavelmente, poucas semanas depois desse Congresso, Willy Brandt seria velado na mesma majestosa sala do Reichstag que tinha acolhido o evento. Entre as personalidades presentes estava a Primeira Ministra de Noruega Gro Harlem Brundtland, eleita primeira Vice-presidenta. Ao mesmo tempo, o Congresso escolhera outros 24 vice-presidentes, entre eles, Brizola. Outra figura atraiu atenções e fora muito festejada, Mikhail Gorbachev, ator de primeira grandeza em todo o processo que levara ao desmembramento da URSS.
O tom predominante nos discursos traduzia uma confiança (que rapidamente mostrou-se excessiva) nos avanços democráticos no mundo, depois das transformações provocadas pela reunificação alemã, a desintegração da União Soviética e o surgimento de um mundo unipolar que para alguns analistas representava “o fim da história”.
Observava-se nos socialdemocratas presentes uma atitude crítica em relação às graves consequências da desregulação dos mercados, com a cada vez maior desigualdade nos salários e nas oportunidades de emprego e a exacerbada concentração da renda. Inclusive uma das declarações finais do Congresso, dedicada aos temas econômicos, sublinhava a preocupação da Internacional Socialista diante dos resultados da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, que tinha sido realizada no Rio de Janeiro em junho daquele ano. O texto afirmava (com realismo, hoje podemos constatar!) que as metas definidas no Rio de Janeiro poderiam correr o risco de não sair do papel se faltasse vontade política para alocar os recursos necessários para implementar a “Agenda 21” e para a luta contra a pobreza.
Na sua intervenção Brizola tinha se referido à responsabilidade que a partir da nova conformação geopolítica cabia à IS. Tinha advertido que com a queda do “assim chamado socialismo autoritário”, a defesa de um “socialismo democrático” devia orientar todas as ações das lideranças e da militância dos partidos da IS, não permitindo que o fracasso de um determinado modelo de socialismo levasse o povo à frustração, pois os caminhos da transformação em prol da justiça social continuavam abertos.
Pois bem, nesse contexto tão formal quando relevante, aquele bilhetinho do Brizola era intrigante. De fato, insinuava e auspiciava algo muito especial. Um programa para aquela noite, fora da programação oficial? O que poderia ser? Por acaso, bilhetes para a famosa Filarmônica de Berlim, durante tantos anos dirigida pelo maestro Herbert von Karajan? Ou quiçá a visita a alguma exposição que ficasse aberta de noite?
Quando a sessão terminou, Brizola nos fez sinal de aguardá-lo fora da sala. Depois de alguns minutos chegou acompanhado por Dona Neusa e Lígia Doutel e nos disse: “Vamos rápido, ou perderemos o começo”. E assim, com poucas palavras, fomos caminhando na direção do belíssimo parque contíguo ao Reichstag, seguindo um sorridente Brizola. Lá, em algum canto, finalmente chegamos ao local do nosso misterioso destino: um circo! Brizola matou a charada: “Imaginem! Encontrar um circo aqui em Berlim!. Não entro num circo desde a minha infância! Quando vi no hotel um cartaz que anunciava a apresentação de hoje pedi no lobby que nos comprassem os ingressos. Vamos entrar logo, que já está na hora! ”
E assim, com as mesmas roupas formais que exigia o rito da Internacional Socialista, nos sentamos nos bancos de madeira, comendo pipoca comprada na hora por Brizola, rimos por mais de uma hora e meia com as trapalhadas dos palhaços, nos emocionamos com os trapezistas e contorcionistas, fomos capturados pela destreza dos mágicos e, sobretudo, desfrutamos a desbordante alegria de Brizola ao recuperar em Berlim parte da infância perdida.
Primeiro encontro: preocupações e sonhos no Uruguai
Não era a primeira vez que essa forma de ser do Brizola, ao mesmo tempo um estadista de nível internacional, um brilhante orador, um destemido militante das melhores causas e um homem de hábitos singelos e coração de menino, me surpreendia. Fora assim desde que o conheci, em Montevidéu, lá pelos idos dos anos 70, quando Neiva Moreira me apresentou os brasileiros que compunham o seu círculo de amizade e fez questão de começar por Brizola. Eu ainda não tinha largado a Faculdade de Química, que abandonaria um pouco mais adiante para me entregar de corpo e alma ao jornalismo, e tinha uma ideia, bastante superficial, ainda, do que Brizola tinha representado e ainda representava no contexto da política brasileira e, poderia dizer sem temor a exagero, latino-americana.
O local onde aconteceria o nosso encontro tinha sido escolha do Brizola, segundo soube pelo Neiva. Chamou-me a atenção o fato de eu nunca ter ouvido falar desse restaurante onde iria conhecê-lo, mas na verdade não era muito habitual que eu almoçasse em restaurantes… A minha surpresa com a figura que iria encontrar começou justamente na escolha do local: um modesto restaurante de um bairro popular de Montevidéu, no caminho de saída da cidade, frequentado por caminhoneiros. Com certeza Brizola era bem conhecido lá, pois fora saudado efusivamente por atendentes e muitos dos fregueses.
Significaram muito, para mim, os detalhes daquele primeiro encontro, desde o local à forma carinhosa como fui acolhida. Comemos um “puchero” (cozido), também escolha de Brizola, e conversamos muito. Não me lembro dos detalhes, salvo o fato de que já quase no final do almoço, quando sem dúvida já estávamos os três muito à vontade, passados os momentos iniciais mais formais, Brizola me colocou um tema bem pessoal, demonstrando uma confiança em mim que me alagou e surpreendeu ao mesmo tempo. Contou-me que era muito difícil, no exílio, manter uma relação normal com os filhos. Falou-me do controle que sofriam ele e Dona Neusa em relação a quem os visitava, desconfiava que também controlavam boa parte de seus movimentos, tudo isso acontecendo numa etapa muito complexa da vida dos filhos, na adolescência. Em particular me pediu apoio no diálogo com a Neusinha. Ele supunha que sendo eu só um pouco mais velha do que ela, poderia me aproximar da Neusinha e contribuir para uma relação mais próxima com os pais. Na verdade, não tive oportunidade de conhecer Neusinha no Uruguai, só vim a encontrá-la, e mesmo assim a tratá-la só superficialmente, já no Brasil. A quem sim conheci desde pequena foi a Layla, filha da Neusinha, que Brizola e Dona Neusa praticamente criaram como filha.
O tema dos filhos, a dor de saber que o golpe de 1964 e o exílio tinham sido traumáticos para os três – José Vicente, João Otávio e Neusinha – atormentou durante todo o resto da vida a Dona Neusa. Em várias ocasiões ela me confidenciou que a decisão de os enviar para Porto Alegre quando o governo uruguaio, sob pressão da ditadura brasileira, colocara a família em prisão domiciliar em Atlântida, um balneário distante uns 40 quilômetros de Montevidéu, tinha sido a decisão mais difícil de sua vida. E, também, a que lhe provocara maior arrependimento. “Era insuportável para as crianças o fato de estarmos recluídos num apartamento que tinha 24 horas por dia soldados na porta, controlando quem entrava e saía, mesmo se se tratasse de coleguinhas da escola, me disse Neusa numa tarde de conversas no seu apartamento na Avenida Atlântica, no Rio de Janeiro. “Mas a forçada separação dos pais, quando foram para Porto Alegre, acabou se mostrando ainda mais destrutiva”.
Vou me permitir uma digressão, para mencionar que a partir daquele almoço fui ingressando paulatinamente na vida dos exilados brasileiros no Uruguai. Passei a frequentar a casa de Carlos Olavo e dona Zuca – onde cometi a minha primeira “gafe” com o meu portunhol… Dona Zuca era uma exímia cozinheira e tinha preparado um maravilhoso almoço para o dia da minha formal apresentação ao casal e os filhos. Já na etapa das diversas sobremesas, eu tentei elogiar a cozinheira, dizendo para Dona Zuca que o almoço tinha estado “esquisito” – palavra que para mim supostamente significava, tal como em espanhol, “delicioso”… Mas a cara de espanto de Dona Zuca me demonstrou que algo estava errado. Por sorte, acostumados às pegadinhas da tradução literal entre o espanhol e o português, alguém entre os presentes rapidamente desfez o mal-entendido… Eu, envergonhada, decidi começar a estudar português, o que fiz com outra exilada, Maluza Stein, que rapidamente passou de professora a amiga e com quem convivi, anos mais tarde, no exílio do México e, posteriormente, no Rio.
O Neiva também me apresentou a Edmundo Moniz e a sua esposa, Ofélia, cujo apartamento passamos a frequentar, assim como fizemos depois da anistia, nas muitas visitas à Rua dos Jangadeiros, em Ipanema, onde eles tinham um belo apartamento e uma impressionante biblioteca. Conheci e frequentei também a casa de Darcy Ribeiro, com quem partilhamos mais tarde o exílio no Peru, mas não cheguei a conhecer em Montevidéu o Presidente Goulart. Só o conheci mais tarde, num breve encontro no exílio em Buenos Aires.
Posso afirmar, a partir dessas vivências, que fui testemunha de um sonho, um sonho sonhado por muitos brasileiros no exílio, nos exílios, brasileiros dispersos pelos quatro cantos do nosso belo planeta azul: o sonho do retorno à Pátria para contribuir na reconstrução de um projeto de desenvolvimento soberano e solidário, guiado pela justiça social. Mas, em particular, fui participando de um sonho do Brizola, partilhado pelo Neiva, por Darcy, por Julião e por tantos outros brasileiros que fui conhecendo ao longo do tempo. Esse sonho vinha de longe, do primeiro dia posterior ao golpe: o de retomar o fio da história! ]
Nos primeiros anos de exílio Brizola tinha concentrado suas energias na derrota do golpe através da insurreição de militares nacionalistas, tendo participado da organização de várias tentativas, todas frustradas, por diferentes motivos. Novas esperanças tinham sido acalentadas a partir da organização de frentes guerrilheiras, opção à qual Brizola aderiu sem muita convicção, segundo depoimento do Neiva que consta, inclusive em seu livro autobiográfico “Pilão da Madrugada”. Mas, com as lições das experiências e frustrações vividas nesses longos anos de exílio no Uruguai, Brizola - depois de colocar um teste à política de defesa dos direitos humanos de Jimmy Carter e ter aceito o seu pedido de asilo nos Estados Unidos, já estabelecido em Nova York – está convencido de que a derrota do golpe teria que vir da luta política.
A convicção no Trabalhismo
Corria a segunda metade dos anos 70 e Brizola inicia uma nova etapa de articulações, desta vez decidido a resgatar o Trabalhismo do porão onde tinha sido jogado depois do Ato Institucional Num. 2, de 1965. Desde aquele ano, proibidos os partidos políticos históricos, só existia no Brasil um bipartidarismo artificialmente criado, com a Aliança Renovadora Nacional (Arena), situacionista, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), da oposição enquadrada. Mas Brizola estava convencido de que o Trabalhismo continuava vivo na memória coletiva e era necessário trazê-lo de volta ao cenário político, recuperar o seu papel histórico de promotor do desenvolvimento com justiça social.
Uma reunião importante, na caminhada do reencontro do Trabalhismo com o seu passado, aconteceu nos primeiros meses de 1979 no México, na bucólica cidade de Cuernavaca. O Partido Revolucionário Institucional (PRI), que governava esse país desde os idos da Revolução Mexicana, campeão na acolhida de exilados e de perseguidos políticos, tinha concordado com o pedido de apoio dos brasileiros que lá residiam, de realizar uma reunião preparatória, outras viriam a seguir, com o objetivo de reorganizar o Trabalhismo. Brizola tinha contado para esse objetivo com a plena concordância de brasileiros exilados no México, entre os quais Neiva Moreira, Francisco Julião, Theotônio dos Santos e Vânia Bambirra.
O período ainda estava carregado de incertezas, mas as notícias que vinham do Brasil permitiam acalentar razoáveis expectativas de uma abertura do regime. Desde a vitória do MDB nas eleições consentidas de 1974 (que muitos estudiosos consideram o “ponto de inflexão” do regime civil-militar), com idas e vindas, observava-se um desgaste do governo militar, para o qual tinha contribuído o deterioro do chamado “milagre brasileiro” e suas consequências, como o crescimento inflacionário, com profundo impacto social. Em particular, inspiravam confiança na perspectiva de abertura política, a atuação firme do segmento progressista da Igreja Católica, a luta dos estudantes em torno da reorganização da União Nacional dos Estudantes (UNE) e os consistentes avanços das mobilizações em favor da anistia, lideradas inicialmente pelo Movimento Feminino pela Anistia, presidido por Therezinha Zerbini, cuja atuação levou, em fevereiro de 1978, à fundação do Comitê Nacional pela Anistia.
Com esses dados, que a imprensa internacional recolhia e comentava, e com informações vindas dos brasileiros que resistiam no país, foi surgindo a convicção de que era chegada a hora de relançar o Trabalhismo, pois essa força política tinha um papel a desempenhar nessa etapa decisiva. E Brizola abraçou essa causa com profunda convicção.
A reunião de Cuernavaca, com apoio do PRI, transcorreu num hotel-fazenda, local propício para o desafio que uma reflexão sobre a conjuntura, com planejamento de futuro. Brizola e Dona Neusa tinham viajado para o México especialmente desde Nova York para participar da reunião. Com eles estava a pequena Layla, na altura com três ou quatro anos, uma companhia ideal para a nossa pequena Micaela, então com menos de dos anos, nascida no México. Aliás, uma deliciosa lembrança das longas horas das conversas prévias ao encontro de Cuernavaca, entre Julião, Brizola e o Neiva, na nossa casa no bairro de Coyoacán, pertinho da casona de Frida Kahlo, hoje museu, é a reprimenda da Leyla a Micaela, que brincava alheia às movimentações dos adultos. “Te comporta, Micaela. Estamos numa reunião política”.
Os dois dias de reflexões em Cuernavaca resultaram frutíferos. Algumas decisões ali adotadas se revelariam decisivas. Uma delas, a necessidade de reunir os trabalhistas do exílio com os trabalhistas que resistiam no Brasil para lançar a plataforma que colocaria o Trabalhismo novamente no cenário político brasileiro. Essa reunião dos trabalhistas exilados e os que continuavam lutando dentro do país acabou se realizando em Lisboa, com apoio do Partido Socialista Português, entre 15 e 17 de junho de 1979. Portugal vivia uma etapa muito fecunda da sua história política, com as transformações decorrentes da “Revolução dos Cravos”, de abril de 1974. Essa revolução tinha sido protagonizada pelos chamados “capitães de abril”, jovens militares que tinham desenvolvido a sua consciência política na guerra colonial, em particular em Angola e Moçambique. Lá, em solo africano, tinham compreendido que o povo português era tão vítima da tirania de Salazar e Caetano quanto os povos colonizados; que as colônias eram mantidas ao preço da carnificina da juventude portuguesa e dos africanos e que quem mais lucrava com a guerra eram os marcadores de armas, os Estados Unidos e a OTAN, que na lógica da Guerra Fria, terceirizavam a guerra.... Conspiraram, derrubaram a ditadura e abriram uma nova etapa para Portugal e para os povos africanos.
Nesse contexto, a solidariedade com as lutas em prol da democracia no Brasil era tida como prioritária por parte das forças que faziam parte do governo português e, em particular, pelo Partido Socialista, afiliado à Internacional Socialista. De fato, no encontro dos trabalhistas em Lisboa participou o Secretário-geral do Partido Socialista, Mario Soares, em representação não só de seu partido, mas também da Internacional Socialista.
A reunião ficou conhecida como o “Encontro dos Trabalhistas do Brasil com os Trabalhistas no Exílio”, e no último dia aprovou a chamada “Carta de Lisboa”, com a plataforma que definia as principais bandeiras e propostas políticas do Trabalhismo para a nova etapa do país. Uma delas é muito significativa, pois está hoje tão ou mais vigente do que em 1979:
A experiência histórica nos ensina, de um lado, que nenhum partido pode chegar e se manter no governo sem contar com o povo organizado e, de outro lado, que as organizações populares não podem realizar suas aspirações sem partidos que as transformem em realidade através do poder do Estado. A falta de apoio popular organizado pode levar a situações a situações dramáticas como aquela que conduziu o Presidente Getúlio Vargas a dar um tiro em seu próprio peito. Partidos e povo organizados constituem, por conseguinte, as duas condições fundamentais para a construção de uma sociedade democrática.
Também extremamente vigentes as definições na esfera econômica. O documento afirma que “É dever também dos Trabalhistas lutar contra a brutal concentração da renda que responde inclusive pelo achatamento dos salários, fixados em índices falsificados e sempre inferiores ao aumento das taxas reais do custo de vida”. Em relação a este tema, o documento defende a necessidade de uma nova legislação trabalhista, “[...] que recupere as conquistas subtraídas pela ditadura e permita a ampliação constante dos direitos dos trabalhadores”. Citava, ainda, o compromisso com a reversão das diretrizes da política econômica, “[...] com o objetivo de afirmar, em lugar do primado do lucro, a prioridade de dar satisfação às necessidades vitais do povo, especialmente as de alimentação, saúde, moradia, vestuário e educação”. E denunciava a política econômica que gera um “[...] contraste espantoso entre a super prosperidade das empresas – especialmente as estrangeiras – e o empobrecimento do povo brasileiro”.
É sabido o que aconteceu depois. A anistia foi finalmente decretada em fins de agosto de 1979, pelo general João Batista Figueiredo. (E eu lembro de ter escutado Brizola se referir a essa anistia, imaginando que, de alguma forma, tivesse mexido com o general Figueiredo, pois o seu pai, general Euclides Figueiredo, tinha sido exilado em Portugal e na Argentina e anistiado depois.)
A etapa posterior à anistia propiciou ao Brasil dias históricos, com a libertação dos presos políticos e a volta dos exilados. Brizola chegou ao Rio Grande do Sul, à cidade de São Borja, 15 anos depois de ter sido obrigado a se exilar, em 6 de setembro de 1979, véspera do dia da Independência. Foi recebido com grande festa popular. “Chegamos com o coração cheio de saudade, mas limpo de ódios”, disse Brizola no seu primeiro discurso em solo brasileiro. E acrescentou que chegava esperançoso, com o objetivo de “tratar do ressurgimento da nossa causa”, referindo-se à refundação do Trabalhismo.
A anistia não foi exatamente a que o povo tinha exigido, e hoje talvez mais do que ontem é possível constatar quantas sequelas essa mutilação de projeto original deixou, sentidas com força nas décadas seguintes e, sem dúvida, no momento atual em que os militares voltaram a assumir o protagonismo aberto no cenário político.
Mesmo com deficiências, depois da anistia os avanços no terreno político permitiram chegar ao almejado momento da reorganização partidária. Brizola confiava na reorganização do Partido Trabalhista Brasileiro como instrumento da nova etapa de organização do povo para avançar nas transformações sociais. Não contava com uma armadilha concebida Golbery do Couto e Silva, grande estrategista dos governos militares, chamado o “Kissinger brasileiro”, que através de uma perversa argumentação jurídica, tirou do Brizola e dos verdadeiros trabalhistas a sigla do partido. Desde a sua perspectiva, impregnada da mentalidade originária da Doutrina de Segurança Nacional, Golbery tinha clareza em relação ao potencial político do Brizola, a sua capacidade de mobilização do povo, com a sua inflamada e cativante oratória. “Não podemos cometer o erro de dar ao líder carismático a sigla histórica”, era o lema de Golbery.
O golpe foi duro. Brizola chegou às lágrimas, como muito bem lembro. Mas, logo recomposto, escreveu a sigla PTB num papel. E num gesto teatral, o rasgou, na frente da militância que o rodeava. Não era hora de lamentações. Era urgente pensar em alternativas. E, sem demora, surgiu a sigla que identificaria os verdadeiros trabalhistas na etapa pós-ditadura: Partido Democrático Trabalhista (PDT).
Contemplações finais
Não é aqui o lugar para refazer toda a trajetória posterior de Brizola, que deixou um legado indelével na política do Rio de Janeiro e do Brasil e o projetou ainda de forma mais nítida como um Estadista, como um grande visionário, um qualificado e experiente administrador.
Mas é possível citar algumas das iniciativas que constituíram a marca indelével das duas administrações de Brizola no Rio de Janeiro e a sua atuação como líder de projeção nacional e internacional: a forte liderança nas Diretas Já, a prioridade à educação, com a construção de mais de quinhentas escolas públicas, projetadas para ser de horário integral, os famosos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), idealizados por Darcy Ribeiro e apelidados pelo povo de “Brizolões”. A atuação como gestor, ciente da importância das obras de infraestrutura para o desenvolvimento econômico, lançando o ambicioso projeto de despoluição da Baía de Guanabara; a construção da Linha Vermelha, artéria vital para a ligação do Rio com a Baixada Fluminense; do Sambódromo, que mudou para sempre o carnaval do Rio de Janeiro e do Brasil; o programa Cada Família, Um Lote, que procurou regularizar a propriedade nas principais favelas do Rio, priorizando os títulos de propriedade nas mãos da mulher; a construção da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF).
No terreno político, a introdução de temas que ainda hoje fazem parte das prioridades da construção democrática: a denúncia do racismo estrutural e a promoção de negros, indígenas, mulheres, jovens, a cargos de destaque na administração, na vida social, no partido.... Quem não lembra o fato histórico do cacique Juruna eleito deputado federal? E de Abdias do Nascimento eleito senador? E a cerimônia de posse do Brizola no primeiro governo? Uma posse histórica, com uma representação internacional digna de um Chefe de Estado! Igualmente importante foi a participação dos trabalhistas verdadeiros, não dos que ficaram com a sigla histórica para transformá-la numa sigla de aluguel, na Constituinte, e a continuação da atuação do Brizola no cenário internacional, denunciando entre outras questões lesivas ao desenvolvimento as “perdas internacionais”.
Neste 2022 que abre perspectivas de mudança através das urnas, é importante de lembrar o papel do Brizola quando foi Lula e não ele que passou para o segundo turno nas eleições de 1989: compreendendo que o que estava em jogo era maior do que Lula e até mesmo maior do que ele, pois era o futuro do Brasil, arregaçou as mangas e foi fazer campanha ao lado do dirigente do PT! E transferiu ao Lula mais de 70 por cento da votação obtida no Rio de Janeiro. A dor de ver frustrada a sua longa (e justa) aspiração a chegar à presidência da República não lhe impediu de analisar friamente o cenário e definir onde ele devia estar naquela hora!
A situação atual é mais grave ainda que aquele período pós-ditadura, no início dos anos 80, quando a liderança de Brizola, a sua convicção na necessidade de retomar o fio da história com o Trabalhismo como instrumento, lhe permitiu superar a manobra de Golbery e fundar o PDT. Ele contou para aquele desafio, para concretizar aquele sonho, com companheiros de grande estatura – a maioria dos quais, como ele, já não está aqui. Teve ao seu lado a Darcy Ribeiro, Neiva Moreira, Doutel de Andrade, Francisco Julião, Benedito Cerqueira, Brandão Monteiro, Jackson Lago, Bocaiúva Cunha, José Maria Rabelo, Luiz Carlos Prestes, Edmundo Moniz, Moniz Bandeira, Theotônio Dos Santos, José Gomes Talarico, Maria Yeda Linhares, Vânia Bambirra, Hésio Cordeiro, entre tantos outros.
O desmonte de tudo o que o povo brasileiro construiu, principalmente desde a segunda metade do século XX, a perda de soberania que isso implica, a exploração e a eliminação de direitos dos trabalhadores, tudo isso torna extremamente importante retomar o legado do Brizola. Retomar o legado desde o início de sua atuação na vida pública, pois há muito também a refletir sobre sua atuação no Rio Grande do Sul, quando foi prefeito de Porto Alegre e governador do Estado. É importante lembrar da sua firme postura anti-imperialista e a defesa do Estado diante da exploração das multinacionais, com estatização da Bonde & Share e da ITT, no início dos anos 1960.
Brizola sempre acreditou no potencial de um povo consciente e organizado, disposto a lutar por seus ideais e seus direitos. Vale mencionar, neste sentido, o que ele conseguiu com a mobilização da Campanha da Legalidade, de 1961, que logra frustrar um golpe de estado em andamento, com a negativa de certos militares a aceitar João Goulart na presidência. Levariam mais três anos as forças pró-imperialistas e conservadoras para então sim, concretizar o golpe.
Por tudo isso e muito mais, pois a vida e a obra do Brizola não cabem nestas linhas, a sua figura se agiganta na medida em que o tempo passa e é possível estudá-la com a perspectiva da longa duração. É com essa perspectiva que o legado do Brizola nos serve de bússola para orientar os caminhos que transformarão o Brasil na pátria sonhada por ele. Todas as homenagens que Brizola está recebendo este ano de seu centenário são merecidas, são justas e devem continuar. Manter vivo o legado do Brizola é fundamental para analisar os desafios do presente e definir um plano de ação.
Referências bibliográficas
CARTA DE LISBOA: MARCO DO TRABALHISMO NA REDEMOCRATIZAÇÃO DO BRASIL. Brasil: PDT. Disponível em: https://www.pdt.org.br/index.php/carta-de-lisboa-marco-do-trabalhismo-na-redemocratizacao-do-brasil/.
Acesso em 08 de abri.2022.
Autor notes
i ice-diretora do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS-UFRJ). Professora Associada do Depto. de Ciência Política - IFCS/UFRJ. Professora do Programa de Pós-Graduação em História Comparada - PPGHC UFRJ, Brasil. E-mail: bbissio@ufrj.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7475-7493.
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